Oh, Demônio de Vilarinho.

Há várias versões da história do Demônio da Vilarinho, mas a que conheci, quando criança, é que houve uma competição de dança na Vilarinho, tradicional avenida de Belo Horizonte, conhecida mundialmente por ser desconhecida das pessoas que não moram em Belo Horizonte. Ao final do evento, um homem se destacou pelos seus passes, seus rodopios, suas encoxadas e seu olhar sensual. Todos ficaram boquiabertos e concordaram que ele seria o grande campeão da noite, merecedor do cheque de dez mil cruzeiros – sei que hoje em dia parece pouco, no entanto, naquela época, Cruzeiro era muito mais valorizado.

E não foi só isso! Extasiados com aquela maravilha, os outros competidores se uniram e colocaram-no sobre os ombros, em meio aos gritos:

_ Mito! Mito! Mito!

Decidiram, ainda, que apenas aquele prêmio não era suficiente diante de tanto brilhantismo. Deveriam lhe dar um espetáculo na Broadway, uma indicação ao Tony ou no mínimo uma abertura no Fantástico. Como não conseguiram fazer nada disso, deram uma “chave da Vilarinho”, falando que ele poderia voltar sempre que desejasse. Lógico que era uma chave simbólica. Na verdade, entregaram a chave de um Fiat Elba 86, que acharam no chão.

O campeão ficou emocionado. Jamais tinha sido tão bem recebido. Pegou seus prêmios e caiu em prantos. Todos lhe aplaudiram, mais forte do que antes, comovidos. Então retirou seu chapéu e se curvou à plateia, em sinal de respeito. Foi quando viram que ele tinha um par de chifres. Todos correram desesperados, com a exceção do Demônio, que pegou sua chave e nunca saiu dali.

Convenhamos que é uma lenda bem mequetrefe. É praticamente um reboot das sereias de Ulisses, no qual a sereia é o Cramunhão, seus cantos são os pagodes, Ulisses são as dançarinas e o mar é tipo a Vilarinho, que igualmente alaga. Também não é lá muito surpreendente. Eu mesmo já vi pessoas fazendo coisas muito maiores do que comprar um chapéu para esconder seu par de chifres. Em alguns lugares, inclusive, se você entrasse num campeonato de dança, sem par de chifres, seria imediatamente desclassificado.

Entretanto, o que mais me intriga nesta história não é sua péssima qualidade, mas é o fato de ter um primo que acredita nela. Sim, em pleno século XXI! Não estou falando do século passado, quando nossos avós viam o bambuzal tremendo no meio da noite, iam checar com apenas uma vela, sem qualquer poste ou luz numa distância de 50km, encontravam um homem defecando agachado e saiam correndo desesperados por ter visto um humano com rabo. Não! Meu primo acredita numa lenda urbana em pleno século XXI!  

Ele certamente contra argumentaria dizendo que eu, de igual modo, acredito em mitos e lendas. A diferença, primão, é que meus mitos não estão vivos. O último mito que acreditei em vida foi o Chico Buarque, até que o vi cantando ao vivo – e pensei que ele estava morto.

Já o Demônio da Vilarinho, não! Ele ganhou a chave de um Fiat Elba 1986! 1986 foi o ano que eu nasci. Se meu primo tivesse certo, eu poderia ter jogado bola com o anjo caído na minha infância. Eu poderia ter sido ele que, na pré-adolescência, vendeu-me aquele videogame Dynavision Radical. Eu poderia ter saído para paquerar e beijado ele na adolescência! Isso explicaria muita coisa, todavia me recuso a pensar que sou contemporâneo de uma lenda!

Além disso, meu primo deveria procurar evidências do relato. Eu mesmo já procurei, em vasta pesquisa no Google. Não obstante, até hoje, contabilizo um total de nenhuma evidência concreta da existência do Tinhoso dançarino: vi zero depoimento das mulheres que estavam dançando com ele naquela noite (e, se existissem, certamente o Datena adoraria ouvi-las); jamais vi uma reportagem sequer falando que Satanás teria sonegado impostos do prêmio ganho (e todos sabem que é melhor mentir para Deus do que para o Imposto de Renda); nem temos uma testemunha (uma única!) que tenha visto sequer um Fiat Elba 1986! Um carro que, se existiu, o proprietário ficou com tanta vergonha de ter comprado que o estacionou em alguma garagem do Demônio da Vilarinho para nunca mais ser tirado.

Enfim, primão, se, depois de todos esses argumentos, você ainda continuar acreditando nesta lenda, gostaria de parabenizá-lo por sua coragem de defender histórias sem sentido. A única coisa que lhe peço é: tome cuidado. Às vezes acreditamos tanto em algo que acabamos nos confundido com o que queremos acreditar. E estamos falando de um mito de um demônio.