Quando estamos escrevendo, um dos maiores desafios é sempre o tempo. Não o do escritor. O escritor nunca tem tempo. Este negócio de viver é muito difícil e por vezes temos que parar de escrever por supérfluos da vida, como ter um trabalho, comprar coisas em supermercado (com o dinheiro do trabalho) e comer as coisas do supermercado (chorando na cama depois de um dia de trabalho).
Mas não é desse tempo que quero falar. Quero falar do tempo da narrativa, pois, se eu não posso manipular o passar dos dias na minha vida, eu pelo menos posso manipular o passar de meus personagens.
Bom, eu lembro na faculdade de letras de falarmos de um tempo cronológico e de um psicológico. O cronológico é quando a narrativa tenta se aproximar ao máximo do intervalo que cada ato duraria no mundo real. Já o psicológico é o ritmo que nós sentimos, que é individual para cada um, a jornada interna.
Enfim… fodas.
Essas definições são boas para sala de aula. No papel em branco, o que importa é o caos da mente do autor sendo imposto ditatorialmente sobre o psicológico do personagem – é, é tipo trabalhar.
Bem, pensando nisso, voltemos a meu livro “Na segunda gaveta”, livro que estou escrevendo. Um dos problemas que tive também foi a parte temporal. Seria um livro que tentaria ao máximo ser cronológico? Essa é a característica da maioria dos romances policiais! Por que o meu não seria?
Bom, era para ser. Todavia, no meio do caminho, percebi que precisava falar de um detetive que até então estava passando batido. Resolvi colocar um flashback. Depois a delegada principal entrou em crise, então surgiu um fluxo de consciência em que memória e presente estão juntos. Do nada, achei que seria bom também colocar uma vítima no futuro… enfim, estou quase inventando o romance policial espacial psicológico, uma coisa que nem Borges previra (a psiquiatria não estava tão avançada naquela época).
E foi aí que percebi que o tempo era tudo na minha narrativa, menos lógico.
Inclusive, essa confusão temporal nem é só minha. Acho que minha geração foi assim. Quando eu era novo, não tinha streamings nem TV a cabo, ficávamos horas na frente da TV, vendo simplesmente o que passava. Começávamos no programa da Angélica, com desenhos infantis apresentados por uma mulher que meu pai entendia melhor do que eu o motivo dos produtores gostarem tanto dela assim; depois mudávamos para a Ana Maria Braga (ainda na Record), que era uma senhora cozinhando enquanto um homem enfiava a mão num passarinho; e almoçávamos vendo violência no jornal mineiro – isso tudo antes de chegar à escola!
Não é à toa que era comum na minha geração ver crianças tendo crises do pânico enquanto viam Pokémon e cozinhavam uma costela ao molho de maracujá.
E todo mundo foi atingido por esse caos cronológico. Eu tenho um grupo antigo, bem antigo mesmo, de amigos, daqueles que eu nem me lembro muito bem o motivo de sermos amigos. Nós nos reunimos sempre que possível, o que geralmente ocorre uma vez por mês ou quando alguém arruma um boy magia e os outros querem ver antes de terminar (sim, se tem uma coisa que une esse meu grupo de amigos é a incapacidade de ter namorados). Nós chamamos de ABP – Aliança Bíblica Polêmica, pois éramos de um grupo de evangélicos chatos na faculdade.
E nem sei como nos unimos. Eu era líder do grupo do direito. O Matheus, eu acho que ele era líder do núcleo do ICEX quando o conheci. A Rafa era do grupo de arquitetura, que era o mais perto do grupo do direito – acho que por isso virei amigo dela. A Gabi só é amiga da gente por ser minha irmã – e mesmo assim já votei para expulsá-la do grupo umas 3 vezes. E a Raquel Termeloglou… eu não sei o motivo dela ser amiga da gente… Bom, ela é da biologia, acho que a encontramos fazendo alguma campanha contra uso de drogas.
Enfim, eis aí meu grupo de amigos (depois chegaram outros integrantes, mas eu não gosto deles). E eles são a prova que o tempo não faz sentido para a minha geração. Para se ter uma ideia, somos amigos há mais de 15 anos! Não porque nos amamos, mas por nunca termos brigado… e só não brigamos porque a falta de noção do tempo nunca deixou.
E não estou exagerando. Lembro de uma briga homérica que teríamos com a Rafa! Eu e Matheus estávamos nervosos com algo, então a Rafa pediu para encontrarmos. Nós já a conhecíamos há anos, então sabíamos como lidar com ela. O Matheus, por exemplo, sempre fala os horários errados: se o rolê começa 20hs, ele fala que começará 19, para ter alguma chance dela chegar no horário.
Então marcamos às 19hs, para todo mundo chegar às 20hs, menos a Rafa, que tinha que esforçar para chegar às 19hs – para chegar às 20hs. Este rolê, inclusive, era na casa dela e, sabendo disso, me desloquei para lá às 20hs, depois de pegar a Gabi… Mas nossa tática não deu certo… Eu, Gabi e Matheus chegamos antes da Rafa… num encontro… que ela marcou… na casa dela…
E qual foi a briga? Não sei. Não lembro. Foi uma briga homérica abortada. Quando ela chegou, já tínhamos comprado pizza. Não tinha nem clima para brigar mais…
Mas voltando ao meu livro, diante de tudo isso que falei, como você quer que “Na segunda gaveta” tenha uma narrativa cronológica? E eu nem sei quem é você! Como você está cobrando isso de mim? E quando eu falo você, inclusive, pode muito bem ser eu mesmo! Então como você (ou eu, ou nós dois!) pode cobrar uma história com uma linha temporal rígida? Eu sei que livro policial precisa disso, mas como? Você está sendo exigente demais com um livro que nem existe! Então pense nisso! Você está sendo tóxico! Você trabalha comigo?
É só isso que peço! Sempre que você ler algo meu, caro leitor, e achar temporalmente confuso, lembre-se: como cobrar do Lucas lógica se nem uma briga ele consegue marcar, pois ninguém chega antes da comida?