Edgar Allan Poe me fascina e inspira pela brevidade, unidade e intensidade de sua obra. Seus contos são criados para um efeito e, como soldados, todos os detalhes marcham em direção ao espanto. E como tive pesadelos com seus vários espantos na adolescência, quando meu pai me obrigava a lê-lo.
Mas Poe é muito mais do que sustos. Muito mais… Poe é um visionário em meio a uma excêntrica e desequilibrada crença no progresso, que retiraria a magia do mundo em prol da razão. Não se engane! Em meio ao século XIX, em plena revolução industrial, isso era um grande feito. A razão instrumental transformara todos em parte de uma engrenagem: éramos apenas uma peça da máquina, que ditava a velocidade de trabalho, nosso rendimento e nosso fim. Não havia tempo para pensar ou ser. O progresso econômico não deixara espaço para o progresso da vida humana: a pressa de produzir deixara em segundo plano a vontade de viver.
“O Homem da multidão” é um dos seus contos visionários. Nele, é apresentado um narrador que observa o homem moderno em plena Londres. Anulada pela aglomeração, a humanidade vaga pela cidade, marcada pela indiferença brutal com o outro e pelo automatismo em seu agir. Mas nem todos conseguem se encaixar neste padrão. O narrador percebe o mal-estar de um senhor estranho, que se angustia com a ausência das pessoas. A todo o momento, o “velho” vai até os lugares mais cheios, em ruas, praças e até recintos boêmios. Se o local começa a se esvaziar, corre para outro. Não pode estar só. Não aguenta estar só. Todavia, busca a multidão, sem com ela se envolver.
Que homem estranho. Um homem como tantos outros de Poe: “Há no homem, diz ele (POE), uma força misteriosa, que a filosofia moderna é incapaz de perceber; e, no entanto, sem essa força inominada, sem essa tendência primordial, várias ações humanas permanecerão inexplicadas, inexplicáveis.” (Charles Baudelaire, Outras anotações sobre Edgar Poe)
Não contarei mais detalhes, nem minhas conclusões. Nada que eu disser sobre esse conto será suficiente para descrevê-lo. Mas não se trata apenas de minha incapacidade: nada mais direi, pois não quero estragar sua luta, caro leitor, para entender os detalhes da obra. Melhor que você os encontre sozinho. Em Poe, assim como nos bons escritores, eles nunca são em vão. Tudo é importante demais para ser deixado para trás. Tudo está direcionado.
Boa leitura.
O HOMEM DA MULTIDÃO (ficha)
Gênero: Conto
Extensão: média (dá para ler em uma sentada)
Dificuldade de leitura: baixa
Dificuldade para compreensão: média
Importância da obra: oxi!!!
Para entender mais: “Homem da multidão e o flâneur no conto ‘O homem da multidão’ de Edgar Allan Poe”, autor Sérgio Roberto Massagli (UNESP). Disponível em http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol12/TRvol12f.pdf
O HOMEM DA MULTIDÃO
Poe, Edgar Allan
Tradução: Dorothée de Bruchard
Ce grand malheur, de ne pouvoir être seul. — LA BRUYERE
Foi muito bem dito, a respeito de um certo livro alemão, que “er lasst sich nicht lesen” — ele não se deixa ler. Há certos segredos que não se deixam contar. Homens morrem toda noite em suas camas, torcendo as mãos de fantasmagóricos confessores e fitando-os lamentosamente nos olhos — morrem com desespero no coração e convulsões na garganta, por causa do horror de mistérios que não aceitam ser revelados. Infelizmente, a consciência humana às vezes carrega tão pesado fardo de pavor que só no túmulo consegue desembaraçar-se dele. E assim a essência de todo crime permanece irrevelada.