Não tenho mais dúvida: a Inquisição não acabou. Ainda há um grupo de elite julgador da sociedade, apto a definir o que é certo e errado ao ser humano. O que mudou foi apenas sua forma de atuação: perdeu a sacralidade. Não tinha mais clima para continuar na Igreja, já que, desde a modernidade, a crença irracional na razão retirou as forças dessa instituição. Hoje, para fazer parte do Tribunal da Santa Inquisição, basta ser médico.
São eles que vieram para redefinir todos os conceitos. O que um médico diz, passa a ser verdade, independente do que queiramos. E eles determinaram muito bem seus inimigos! Esqueçam os hereges, os pecadores, os bruxos! A nova batalha está focada nos gordinhos.
Não há como escapar de seus julgamentos. Eu sei, eu sofro com eles.
Desde novo, acreditei que era um “pouco” cheinho por causa dos meus ossos grandes. Entretanto, refletindo sobre um costelão de boi que estava comendo, percebi que meus ossos até que eram grandes, mas estavam revertidos por uma capa de gordura bem espessa. Foi aí que entendi que era gordo. Mas eu nunca liguei. Muito pelo contrário. Ser rechonchudo é uma forma de resistência. É sinal de personalidade, pois a sociedade não nos aceita: é comum pessoas atravessarem a rua quando me vem. Não ligo. Afinal de contas, elas não caberiam comigo na calçada.
Entretanto, apesar de não me importar com meu deslize estético na região estomacal, parece que os médicos importam. O novo Tribunal da Santa Medicação insiste em mostrar isso: onde há um microfone, lá haverá um inquisidor para falar do perigo do sobrepeso, da gordura abdominal, da vida sedentária, do uso excessivo de Nutella.
Mas, por quê? Não seria melhor cada um começar a cuidar da sua vida e voltar a passar “TV Globinho”? Eu era feliz quando comia biscoito Passatempo vendo Dragon Ball. Agora, fico com vergonha de comer na frente dos apresentadores do programa “Bem Estar”. Sismo que eles estão me olhando.
Antes, a Inquisição tinha o poder religioso para fazer seus mandamentos serem cumpridos. Se você não os seguissem, iria para o inferno. Se não acreditasse, iria para a fogueira. Tudo de forma arbitrária. Ninguém sabia o motivo deles combaterem seguidores do conceito de Terra redonda ou o porquê de não terem incluído “Iracema” na lista de livros proibidos do Index (afinal de contas, Iracema é daqueles exemplos de livros que se deve morrer antes de ler).
Hoje, a arbitrariedade também permanece, sendo que sua força advém de artigos científicos (que só eles possuem paciência para ler) que criam diversos parâmetros estruturais malucos. Afinal, por que a pressão tem que ser 8 por 12? Por que não pode ser 13 por 19? Por que a glicose boa é entre 70 e 99 mg/dL? Qual o problema se passarmos algumas dezenas? Por que o IMC tem que ser até 24,9? O meu, por exemplo, depois que eu fiz 25, passou a acompanhar minha idade.
Simplesmente não sabemos. O Santo Médico estabeleceu e devemos cumprir. Se não conseguirmos, teremos nossas consequências. Contudo, mais uma vez, eles foram sábios. Não cabe aos médicos o trabalho sujo que cabia aos padres. Não. Atualmente, a tortura está na mão dos seus executores: os donos de academias.
A ginástica, assim como a tortura, é uma forma de limpeza. A diferença é que a tortura limpava os hereges e a academia os gordinhos. Por exemplo, se a fogueira purificava os excessos da carne (luxúria, inveja, cobiça), o elíptico purifica os excessos de carne (picanha, maminha, linguiça).
Enfim, entender essa conspiração é uma forma de lutar pelo direito do ser humano em ter ossos largos! É resistir pelo direito de ter gula, o melhor pecado da atualidade (desde que o Temer proibiu, com a nova reforma trabalhista, a preguiça).
Enquanto não nos conscientizamos, vou fazendo minha academia, pois, apesar de não importar com padrões estéticos impostos pelos médicos, meu vizinho liga (e a Bárbara já reparou nisso). Pelo menos espero que dê resultados. Desde que mudaram minha ficha, na semana passada, meu corpo está tão dolorido, que, pelo menos, cinco quilos eu devo ter emagrecido.