Quando estava tentando (tentando do verbo tentando mesmo, de já era) escrever meu novo romance, o “Na segunda gaveta”, tive um problema sério de ambientação. Olha, eu sempre marquei minha mineiridade nos livros colocando um pouco de Belo Horizonte, talvez o maior município da região metropolitana de Ribeirão das Neves. No entanto, desta vez, eu tive que tirá-la. O livro vai se passar em Santa Luzia.
E não me leve a mal, belo-horizontinos. A cidade continua linda. A questão não é com ela. A questão é com o grafite! Sim, isso mesmo, a arte de rua e o tanto que vocês estão a gourmetizando!
Não que o grafite tenha saído da parede, ganhado cores novas, entrado na época da IA. Não é por esse lado. Estruturalmente ele parece a mesma coisa: um meio-termo entre uma obra de arte e uma revolta de quem não se sabe muito bem o porquê está revoltado (mas tá!). O problema atual está mais em onde ele se encontra.
No livro, vai ser crucial à apuração que uma investigadora olhe a expressão urbana da cidade, desde os desenhos até as pixações. E aí vem o BO. Em Santa Luzia, isso ainda faz sentido. Aqui em BH, a investigação estaria totalmente prejudicada:
_ Inspetor Digão, você está vendo este grafite atrás da mulher levando um hamburguês vegano de cozimento lento na manteiga de girassol com especiarias?
_ Sim, investigadora Luisa. Algo está muito estranho. Parece que as cores estão avisando que o traficante de vape sabores sin nicotina mudou. Precisamos apurar!
_ Claro! Faremos assim que eu terminar este meu chopp artesanal, companheiro.
Bom, em resumo é isso: os grafites foram para os restaurantes e bares. Sério. O grafite. Em BH. Em um estabelecimento comercial… Como assim? Tem algo muito estranho acontecendo.
E olha, veja bem, eu não sou contra o a arte de rua! Muito pelo contrário! E nem é uma questão filosófica, da importância do desenclausuramento das obras em galerias. Não, eu amo o grafite desde que sou novo e ainda morava em Neves, pois ele foi a primeira expressão anárquica que conheci: ele me afastava dos políticos.
É aquele velho ditado: “Parede vazia é oficina de candidato a vereador”. Toda parede que não era dominada pela boa e velha pintura mural artística acabava sendo alvo de alguma pintura de candidato a vereador. E isso era perigoso.
_ Por que está chateado, Jonhon?
Lembro uma vez de ter perguntado para o Johny, meu vizinho, quando tínhamos uns 9 anos.
_ Pintaram o nome de um vereador no muro lá de casa, Lucas.
_ Sério? Deixa de ser bobo. Colocaram lá em casa também, o do “Dr. Moacir – Invista em você”. Ele nem me conhece, Jonjon. Tudo que já foi investido em mim deu prejuízo. Acontece. Qual político pintou seu muro?
_ Vereador Caio Pinto.
_ No, Jonhy, sinto muito.
E aquele não foi um ano fácil para o Johny.
E não era só isso! Não, o grafite era anárquico pois vinha sombras, era escondido, charmoso, subversivo. Não era como as propagandas de vereador, que você via o cara pintando durante o dia. O grafite aparecia do nada! Você ia dormir e, na manhã seguinte, alguém pintou um homem com cachimbo na parede da sua casa. Você ia num banco e, quando saia, eles tinham feito um recém-nascido com cara de Gandalf. Seu pai tirava um cochilo na rua sem camisa e, quando acordava, tinham desenhado um sol no umbigo dele (pelo menos foi essa a desculpa que meu pai deu pela única tatuagem que possui).
E quem era o pintor? Quem? Ninguém sabia! Ninguém. É como pai de criança gerada no Lollapalooza: todo mundo sabe que tem, só que ninguém nunca viu.
Triste, pois isso tudo acabou. Sim, o velho grafite apolítico secreto saiu do gueto, das casas de tijolo quebrados, da clandestinidade, ganhou autores e invadiu nossos estabelecimentos comerciais. E eu acho que foi um golpe capitalista – talvez o maior desde que Virgínia Fonseca aproveitou nascimento da filha para lançar marca de produtos infantis.
Aqui em BH nós tínhamos dois polos gastronômicos clássicos: a Savassi e a Guaicurus. Para quem não conhece, a Savassi é um bairro cheio de bares que mais parece uma reunião do Partido Novo. A Guaicurus, por sua vez, parece uma reunião de pessoas que roubam o pessoal reunido do Partido Novo.
Lógico que tinham locais de alimentação espalhados, tipo a Nino, Café Palhares, Pizzaria do Chaolin. Mesmo assim, no fundo, a gente sabia que o sonho de todo bar era ir para estes dois polos gastronômicos, como se fosse o auge da vida do estabelecimento, todavia, nem sempre o proprietário era bonitinho o suficiente para ir para a Savassi, nem tinha anticorpos suficientes para ir para Guaicurus.
Nos últimos 10 ou 15 anos (pode ser mais, eu sou péssimo em matemática), começaram a descentralizar os bares e restaurantes na capital. E foram para diversos locais que estavam esquecidos (como Mercado Novo), abandonados (rua Sapucai), nem tinham sido inventados (Fleming) ou que simplesmente eram feios demais para ter vida (Barreiro).
E eles precisaram chamar a atenção, ou não sobreviveriam diante da enorme concorrência da Savassi e da Guaicurus. E como fizeram isso? Sim, grafite. É como aquele seu amigo que é feio e pobre, no entanto faz um monte de tatuagem. Geralmente funciona? Não… Mas a gente reconhece o esforço.
E eles proliferaram! Pinturas novas, velhas, assinadas (!), nas paredes de entradas, perto das mesas, dentro dos bares, até no banheiro! Sim, no banheiro! Teve um bar que fui com a Bárbara, perto da Raul Soares, no qual havia um desenho de uma moça de seios fartos olhando para o mictório e dizendo: “É pequeno, né?”.
E essa foi a primeira vez que sai com autoestima baixa de um banheiro desde a quinta série.
Sinceramente, eu não sei o futuro do grafite. Meu medo é que ele esqueça que saiu dos guetos e que sua função primordial é anárquica, não capital. Não me levem a mal, mas enquanto vocês pintam restaurantes na cidade, os muros de Neves ficam cada dia mais indefesos para os políticos.