Trabalhe em silêncio e um dia vão esquecer de te pagar – um livro sobre outro

Há sempre aquela pessoa que tenta nos ajudar, do fundo do coração, e acaba avacalhando com tudo. Eu estava indo bem, sério mesmo, na escrita do meu novo romance. Não tinha como dar errado: uma delegada de polícia envolvida em uma grande investigação enquanto tenta comprovar sua inocência na corregedoria. Perfeito, né?

Eu sou delegado de polícia! Check! Eu trabalho com investigação! Check! Eu sou policial, tenho que provar minha inocência o tempo inteiro: “Você deve ser alcoólatra, né, Luca? Não! Bateu nele, Luca? Não! Você ganha misto de graça na padaria, Luca? Calma, você sabe que eu sou policial civil, não PM, né?”! Ou seja, provar minha inocência, check!

Perfeito! Simplesmente eu estava escrevendo sobre algo que eu dominava, não tinha como dar errado, e as páginas iam se escrevendo sozinhas, em uma velocidade que era impressionante… Até que eu descobri que a principal ameaça do artista não é concorrer com a Ivete Sangalo em editais da Lei Rouanet. Aparentemente, o mal mora muito mais perto da gente – e ele manda mensagem de voz no WhatsApp:

_ Ei, lindo.

Foi assim que começou o áudio de 24 segundos que estragou meu livro. Não vou dizer quem mandou, pois é dia dela lavar vasilha e tudo que eu não quero é ela irritada, mas logo depois dessa bela introdução, minha algoz falou:

_ Tem como você passar no supermercado?

Talvez eu esteja dando dicas demais de quem mandou a mensagem, mas isso não interessa! O que vem a seguir que foi o pior, pois, apesar de ser ruim ter que ir ao supermercado, geralmente tal ato não é o suficiente para destruir um livro inteiro (apesar de conhecer um caso de uma compra no Verdemar que destruiu um casamento – a esposa pegou o cara do estacionamento). E o áudio continuou:

_ Aqui, tava pensando no seu novo livro. Tem certeza que vai fazer com uma delegada? As mulheres possuem algumas questões que são complexas demais para vocês.

E foi aí que percebi que havia uma grande falha no checklist do meu enredo: eu não sou mulher!

Minha primeira reação foi desesperar. Quase me sentei na frente do espelho e citei o poeta Fiuk, pedindo desculpas por ser homem, branco e hétero, mas respirei fundo.

A verdade é que a crise veio, mas não foi das maiores. No fim do dia, já tinha concluído que não era minha culpa querer escrever um personagem feminino. Grandes autores homens já criaram personagens femininas fantásticas. Também concluí que tampouco era culpado por ser branco! De fato, se eu pegasse um pouco de sol, certamente já daria para o IBGE me desclassificar de branco e colocar na classificação “da cor do pecado”. E nem tão hétero eu sou assim, convenhamos! Eu vejo “90 dias para casar”.

No outro dia, pegando o computador na certeza que a destruidora de livros não teria me abalado tanto assim, tentei retornar à escrita. O problema é que eu voltei logo no capítulo 21. E eu já tinha o planejado… E foi aí que eu percebi que de fato eu estava lascado: a delegada era bilingue.

Se por um lado eu posso superar as diferenças de gênero, tentando escrever uma personagem complexa e completa, por outro eu jamais poderei superar o abismo que há entre mim e um bilingue.

Eu já tentei. Tentei mesmo. Anos de cursinho. Anos! E em todos eles eu tive que aprender o verbo “to be”. Era a mesma sensação que tenho quando vejo a Ivete Sangalo na TV: “Já se passaram 50 anos e nada mudou”. A única coisa é que eu ficava mais velho, os professores mais novos (talvez por minha idade se aproximar cada dia mais das deles) e a certeza que eu nem sei usar o verbo “to be”.   

Quando entrei na faculdade de Letras, não dei mole e me escrevi logo em uma matéria em inglês, para aprimorar meus conhecimentos: “A bíblia como literatura”. No entanto, esqueci que, para aprimorar conhecimentos, temos que ter conhecimentos. Um fracasso.

Talvez o problema fosse com a língua inglesa, pensei. Você sabe, eu já fui hippie, antes de ter que trabalhar… Vai que eu tivesse uma trava… Então fiz italiano! Fiquei no Italiano I mesmo e não entendi até hoje porque o Luiggi foi à praça (e esse era o texto do capítulo 1). Acho que ele queria tomar sorvete, mas também pode ter acontecido um atropelamento envolvendo carretas. Não tenho certeza.

Depois da péssima experiência com o Luiggi, achei que eu tinha que ir para a essência da comunicação! Aprender as bases linguísticas poderia facilitar meu desenvolvimento nas línguas modernas, certo? Parecia lógico, por isso fiz grego antigo e latim. Fui tão mal que fiquei com inveja do Bambam quando ele apanhou do Popó.

Enfim, nessas incursões nas matérias de inglês, italiano, grego antigo e latim fiquei com algumas certezas: eu jamais conseguiria me comunicar bem com um britânico, com um italiano ou com alguém que estivesse morto.

E aí o livro travou.

Fui para o capítulo 22, deixando o 21 aberto. Ainda não tive condições de encará-lo e nem sei como vou superar o fato de minha personagem principal não poder ser bilingue. Provavelmente vou ter que reescrever o plot falando que ela tentou fazer uma investigação e não conseguiu, por uso indevido do verbo “to be” ou algo assim. E, o que mais dói nisso tudo, é que mais uma vez um personagem terá que ser mais burro do que deveria ser, não por causa do que o enredo pede, mas por causa da incompetência do seu autor.
Se continuar assim, meu livro vai acabar virando um filme da Marvel.