Quando tinha 17 anos, resolvi que era hora de aprender a dançar. Não que eu gostasse do remelexo. Longe disso. Para mim, dança é só um instinto milenar que nos possui do nada assim que batem numa corda ou num tambor. Afinal de contas, você acha que alguém inventou o frevo? A gafieira? O forró? Claro que não. Ninguém simplesmente pararia no meio de uma tarde, olharia para o céu e, do nada, pensaria: “Acho que vou pegar um bofe e sacudir ele pelo salão”.
Creio que a maioria das danças foi recebida por possessão transcendental. E o ritual é muito simples: alguém faz algum ritmo aleatório (e a Anita já nos mostrou que pode ser bem aleatório mesmo) e os deuses se encorpam nos demais humanos. Entretanto as divindades são infinitas, gigantescas, grandiosas. Os homens, em sua insignificante finitude, jamais poderiam recebê-las sem suas consequências: no caso, é descer até o chão.
Eu não gostava desse ritual. Nunca vi muito sentido. Contudo, quando comecei a ir às festinhas, percebi que quem comandava este culto musical eram os deuses da fertilidade: quem dançava, dançava com alguém.
Tentei. Fiz até aula de dança. Um ano. Não deu certo. Deidades não me possuíam. Ou talvez até possuíram, mas foi o deus errado: possivelmente foi alguma entidade grega milenar envolvida com drogas ilícitas.
Deste modo, entendi que não conseguiria copular pela dança. Tinha que tentar algo novo, diferente, sensual, seduzente. Infelizmente, acabei continuando na mesma área que já não havia dado certo: resolvi tocar violão.
Tentei e tentei muito. Comprei revistas (na época que havia revistas) em bancas (na época que havia bancas) cheias de músicas (na época que havia músicas). Também arrisquei ouvir rádio (na época que havia rádio) para ver se conseguia pegar (na época que eu achava que ia pegar alguém) de ouvido. Em vão.
Faz 16 anos que tenho violão. Neste tempo, aprendi a tocar só composições do David Quilan. Para quem não conhece, ele é um famoso compositor gospel que conseguiu compor mais de 60 músicas usando só D, Em e A. Além disso, ele conseguiu compor metade de suas obras utilizando uma espécie de análise combinatória de quatro palavras: “poderoso”, “deus”, “alma” e “digno”. Apesar disso, só consegui decorar seis músicas… em 16 anos.
O violão é meu maior fracasso, juntamente a minha puberdade. Todavia, nunca tive coragem de jogá-lo fora, pois foi um presente de minha mãe. Ele fica simplesmente aqui, dependurado na parede da sala. Lá, parado. Quase parado, na verdade, pois fica como se me olhasse. Dependurado, mas me olhando. No alto da parede, se achando superior. Eu sei que ele não fala, no entanto acho que ele me julga. Sempre que minha vida está boa, ou estou muito otimista, ou se alguém me elogia, percebo-o espionando, de cabo de olho, sorrateiro, com aquele buraco vazio dentro dele, o buraco que faz o som, som que nunca consegui tirar, o som do meu fracasso, o som que sai do buraco, como se o som que tentei tocar, e nunca consegui, dissesse o tempo todo: “Lembra que até a Anita toca violão e você não, né?”.
Meu violão é uma dose diária de humildade.
Enfim, pelo menos sei tocar seis canções. Em mais 16 ou 17 anos, saberei o suficiente para gravar um CD cover do David Quinlan. Mas acho que nem vou tentar. Ao que tudo indica, quando a música toca, ou quando eu toco as músicas, não sou possuído por nenhum deus da fertilidade. No meu caso, estou mais para uma possessão satanista.