Tenho uma prima gente boa – e isso é bem raro, principalmente após a disseminação do Whatasapp. Não que ela tenha realizado feitos históricos, tenha ido ao surubão de Noronha, trabalhe como figurante de “Malhação” ou até mesmo seja uma assassina em série, daquelas que serão homenageadas em algum programa diário da Band. Não. No entanto, conversar com ela é diferente, sabe?
E olha que não somos muito próximos – e a cada ano estamos mais distante. Ela é simplesmente aquela pessoa que o Tempo resolveu afastar. Eu gosto dela, no entanto, parece que essa entidade cósmica, que insiste em passar as folhas do calendário (e aumentar nossa circunferência abdominal), toda vez que nos vê aproximar, arruma alguma confusão:
_ Que isso Lucas? Você está tentando marcar de ver filme com sua prima? Já falei que não quero! Não insiste! Não entende mesmo, né? Não vai e pronto! Vou até colocar aqui na agenda: “SÁBADO: a pizza portuguesa de quinta vai começar a fazer efeito”.
Ao que tudo indica, o Tempo atua conjuntamente com as entidades cósmicas intestinais para separar algumas pessoas.
Somos, atualmente, apenas aqueles parentes que se respeitam e torcem para que tenhamos medulas ósseas compatíveis, caso precisemos. Na verdade, na última vez que a encontrei, nem lembrava muito bem o motivo de acha-la tão simpática, até que conversei com ela.
Não era uma celebração especial ou algo assim. Era apenas um almoço de sábado, aquele breve momento que a família se junta no intuito de olhar na cara do Tempo e dizer: “O que você esparrodou, o pastelão da vovó junta”.
Neste dia, puxei uma cadeira aleatória na mesa e peguei um bom pedaço do pastelão, que é o nome que aqui em Minas nós damos para uma mistura de carne moída com batata envolvida em uma massa que só é gostosa por ter sido feita pela minha avó (quando fiz sem a dona Djandira, ficou parecendo que aquele gênio do Habib’s fez uma esfirra com materiais de construção).
Essa prima, então, se assentou do meu lado e resolveu puxar conversa:
_ E aí, Lucas? E a delegacia?
Dessa parte não gostei. Um homem com pastelão não quer conversa com ninguém. Ainda mais que meu primo Thiago, vulgo “Bucho Oco”, não havia chegado no almoço ainda. Mesmo assim resolvi responder:
_ Mudei.
_ Ahn? Não está trabalhando em Santa Luzia?
Balancei a cabeça negativamente. Se estiver com pressa para comer, responder “não” balançando a cabeça te possibilita continuar mastigando – #fica_a_dica.
_ Onde você está agora?
_ Na casa da vovó.
Ela riu, mas eu não falei brincando. É difícil pensar quando um pedaço de pastelão agarra na garganta.
_ Não, sô, sério, mudou para qual delegacia?
_ Plantão de Sabará.
_ No plantão? De noite? Nossa! Verdade? Jura? Que massa.
Larguei momentaneamente o prato e a olhei. Não era ironia. Parecia que, de fato, ela queria saber algo sobre mim.
_ Como é trabalhar de noite?
Sim, depois dessa pergunta confirmei minha teoria: ela queria de fato saber algo.
_ Dá sono.
_ Aposto que vê cada coisa nessa delegacia. Já viu um homicídio? E briga de família? Deve ter muita, né?
Conversamos por uns 20 minutos. Contei vários casos, histórias de delegacia, respondi perguntas sobre a Bárbara, até que o “Bucho Oco” apareceu no almoço. Perguntei se queria outro pedaço, porém ela ainda tinha bastante em seu prato, então corri sozinho para tentar repetir antes do Thiago se servir. Quando retornaria ao meu lugar, minha avó já estava lá.
Não conversei mais com minha prima, entretanto naquele dia entendi o motivo dela ser gente boa. Ela ficou só me ouvindo contar, no máximo fazendo algumas perguntas. Quase uma psicóloga, só sendo diferente por não ter me cobrado nada no final da conversa e por eu não ter saído de lá com vontade de me matar.
Nesses 20 minutos, ela simplesmente nada disse. Nem o pastelão ela conseguiu comer! Não sei se trabalha, se reformou a casa, se ainda tem um cachorro que me mordeu quando eu era novo, se continua casada (e, na minha família, essa estatística tem que ser renovada semanalmente). Nada disso. Pelo visto, ela é gente boa não porque a vida dela é interessante, mas porque ela conversa comigo como se minha vida fosse interessante.
De todo jeito, ficou o aprendizado: quem é gente boa, não consegue repetir pastelão.