Não siga o coração

Lembre-se: aquele que aconselha a seguir o coração não tem noção de que ele está cheio de sangue. Não espere nada deste órgão, a não ser a vontade do caos, da destruição, da morte, da luxúria e de um monte de outras coisas que você tem vontade de fazer, mas que, se não for um personagem da novela das 9, vai preso.

E as religiões sabem disso! Não é à toa que todas elas nos convidam a purificar o nosso coração. E é fácil perceber seu despudor. O meu, por exemplo, avisa o tempo todo qual são seus anseios. Desde a infância, quando tentava estudar, eu quase morria, pois ele se negava a bater. Contudo, era só eu tocar uma campainha do vizinho e correr que ele quase saia pela boca! Hoje em dia, de igual modo, quando tento ver o programa “Bem Estar”, ele fica tão lerdo que, em vez de impulsionar o sangue, só o estoca, recusando a trabalhar. Contudo, se insana quando vejo “Alienígenas do passado”.

O coração talvez seja o único músculo viciado nas doideiras que passam na TV e na adrenalina de não saber se o vizinho vai atirar em você dessa vez. Portanto, ele não deve ser seguido em hipótese alguma! Se o fizer, morrerá antes dos trinta anos, de overdose de Nutella, deitado no sofá, enquanto vê Vídeo Show.

Mesmo assim, pessoas desavisadas ainda insistem em escutá-lo.

Certa vez, eu saí de uma prova na UFMG exausto, cansado, degringolado, acabado. O professor nos “regaçou”, perguntando conceitos de autores que, se de fato existiram, provavelmente não foram lidos em nenhum lugar desta terra. Meu coração, o órgão da treta, insistia que eu fizesse alguma merda: desse uma surra no professor; roubasse a sacolas de provas, ou fizesse um textão no Facebook. Entretanto, preferi escutar outro órgão muito mais simpático que possuo, meu estômago, que insistia em comer um “pão da alegria”.

Para quem não conhece o “pão da alegria”, trata-se de uma espécie de bolinho hippie, supostamente feito com “ervas” (espero que legais), recheado de chocolate e vendido na cantina “alternativa” da UFMG (na FAFICH). Certamente, é uma das grandes conquistas do ser homos cumilonis, meus ancestrais, parentes próximos dos homos sapiens, que estavam mais preocupados em comer do que em criar ferramentas.

Então, desci para meu carro, que estava na rua ali perto. Assentei tranquilo, ligando o rádio, enquanto me deliciava com a nova aquisição. Olhando aleatoriamente o mundo, reparei, pelo meu retrovisor, que um veículo estava bem ao lado, com o pisca alerta ligado. Continuei comendo, pois achei que ele apenas sinalizava que estava em fila dupla, provavelmente esperando alguém sair da faculdade. Contudo, reparei que o automóvel se aproximou, ficando parelho, janela com janela. E lá dentro havia uma velhinha que me olhava… só olhava… e se foi.

Continuei comendo, tranquilo, sem pensar em nada. Comecei a divagar um pouco sobre a prova, a vida, o filme do Blade Runner (alguém entendeu?), olhando uma árvore, que me dava sombra. E então, do nada, como se fosse uma aparição de satanás, ouvi uma vós:

_ Ei!

Assustado, olhei para a janela do passageiro, de onde vinha o chamado. E lá estava ela! A velhinha! Com o corpo debruçado, metade dele dentro do meu veículo, esbravejando:

_ … Seu malcriado! Você sabia que eu queria a vaga! Por que não saiu? Ou sinalizou? Atrevido! …

Naquele instante, eu tinha todo o direito de xingá-la ou até mostrar um dedo para ela (não um dedo bom, mas um daqueles ruins), pois foi injusta comigo: eu simplesmente não tinha atinado que ela queria minha vaga. Só achei que era uma senhora com tempo livre e falta de senso para parar ali no meio da rua. Entretanto, a única coisa que eu respondi foi:

_ Óóh, eu tô comendo, ôôôh…

E ela saiu do carro, ainda resmungando, e se misturou no meio da multidão.

Refletindo depois sobre aquele dia, compreendi que aquela senhora seguia seu coração sanguinolento e toda perversidade e a maldade dele originárias. Eu, por outro lado, não consegui respondê-la, pois dentro de meu coração não havia sangue… havia “pão da alegria”.