O homem da multidão (Edgar Allan Poe)

Com a testa na vidraça, estava deste modo ocupado em perscrutar a massa, quando de repente apareceu um rosto (o de um velho decrépito, de uns sessenta e cinco, setenta anos de idade) — um rosto que imediatamente chamou e absorveu toda a minha atenção, por causa da absoluta idiossincrasia de sua expressão. Eu nunca tinha visto nada nem de longe parecido com esta expressão. Lembro bem que a primeira coisa em que pensei, ao avistá-la, foi que Retzch, se a houvesse contemplado, a teria muitíssimo preferido às suas próprias incarnações pictóricas do demônio. Como eu tentasse, durante o breve instante de meu inusitado estudo, formar uma análise daquilo que ela me transmitia, em minha mente despontavam, confusa e paradoxalmente, as imagens de imensa capacidade mental, cautela, indigência, avareza, frieza, maldade, sede sanguinária, triunfo, alegria, terror excessivo, intenso — supremo desespero. Me senti estranhamente desperto, maravilhado, fascinado. “Que história fantástica ”, pensei comigo mesmo, “não estará escrita neste peito!” Me veio então um ardente desejo de não perder o homem de vista — de saber mais sobre ele. Vestindo precipitadamente um sobretudo e apanhando meu chapéu e minha bengala, me dirigi para a rua e abri caminho pela multidão na direção que eu o vira tomar; pois ele já tinha sumido. Com alguma dificuldade finalmente o avistei, me aproximei e o segui de perto, mas cautelosamente, de modo a não chamar sua atenção.

Eu tinha agora uma boa oportunidade de examinar a sua pessoa. Era de baixa estatura, muito magro e aparentemente muito frágil. Suas roupas estavam, no geral, imundas e rasgadas; mas passando ele de vez em quando pelo brilho forte de uma lâmpada, percebi que sua roupa branca, ainda que suja, era de boa qualidade; e, se meus olhos não me enganaram, entrevi, por um rasgão do roquelaure* cuidadosamente abotoado e obviamente de segunda mão que o envolvia, um diamante e um punhal. Estas observações exaltaram minha curiosidade e resolvi seguir o desconhecido aonde quer que ele fosse.

Era agora noite escura, e uma espessa névoa úmida pairava sobre a cidade, logo desaguando numa chuva densa e pesada. Esta mudança de tempo teve um estranho efeito sobre a multidão, que se abalou toda em novo tumulto e se abrigou sob um mundo de guarda-chuvas. A ondulação, o empurra-empurra e o burburinho ficaram dez vezes maiores. De minha parte, eu não me importava muito com a chuva — o resquício de uma febre antiga em meu metabolismo dava à umidade um quê de perigosamente agradável. Atando um lenço na boca, continuei firme. Durante meia hora o velho seguiu seu caminho com dificuldade pela grande artéria, e eu ali andava bem perto dele por medo de perdê-lo de vista. Não tendo uma vez sequer se voltado e olhado para trás, ele não me notou. Em seguida tomou uma rua transversal, a qual, ainda que cheia de gente, não estava tão apinhada como a principal de que tinha saído. Ali tornou-se evidente uma mudança na sua atitude. Ele andava mais devagar e com menos determinação do que antes — mais hesitantemente. Atravessou e reatravessou a rua repetidas vezes, sem objetivo aparente; e a massa ainda era tão densa que, a cada um daqueles movimentos, eu era obrigado a segui-lo de perto. Era uma rua estreita e comprida, e ele a percorreu por quase uma hora, durante a qual o número dos transeuntes foi se reduzindo àquele comumente visto à noite na Broadway perto do parque — tão imensa é a diferença entre uma multidão londrina e a da mais populosa cidade americana. Uma segunda mudança de direção nos trouxe a uma praça esplendidamente iluminada e transbordante de vida. O antigo jeito do desconhecido reapareceu. Seu queixo caiu sobre o peito, enquanto seus olhos se moviam desvairadamente por baixo das sobrancelhas franzidas, para todo lado, para os que o cercavam. Ele apressou seu passo firme e obstinadamente. Contudo, fiquei surpreso ao perceber que, depois de ter contornado a praça, ele se virava e retornava sobre seus próprios passos. Ainda mais atônito fiquei ao vê-lo repetir a mesma caminhada várias vezes — quase me descobrindo uma vez em que deu a volta num movimento súbito.

Neste exercício ele gastou mais de uma hora, ao fim da qual éramos muito menos perturbados pelos transeuntes do que no princípio. A chuva caía com força; o ar esfriava; e as pessoas estavam voltando para casa. Com um gesto impaciente, o andarilho entrou numa rua secundária comparativamente deserta. Ao longo dela, por cerca de um quarto de milha, correu com uma presteza que eu nunca teria imaginado em alguém daquela idade, e que tive bastante dificuldade em acompanhar. Em poucos minutos chegamos a um vasto e tumultuado bazar, com cujos locais o desconhecido parecia bem familiarizado, e onde sua atitude inicial fez-se notar novamente enquanto ele abria caminho para lá e para cá, sem objetivo, por entre o bando de compradores e vendedores.

Durante a hora e meia, ou cerca disto, que passamos neste lugar, foi preciso muito cuidado de minha parte para mantê-lo ao meu alcance sem chamar sua atenção. Por sorte, eu usava um par de galochas de borracha, e podia ir e vir em perfeito silêncio. Em momento algum ele percebeu que eu o observava. Entrava numa loja atrás da outra, não perguntava o preço de nada, não dizia uma palavra, e mirava todos os objetos com um olhar ausente e desvairado. Eu estava a estas alturas totalmente espantado com sua conduta, e decidi firmemente não me separar dele até que tivesse de alguma forma satisfeito minha curiosidade a seu respeito.

Um sonoro relógio bateu onze horas e os freqüentadores deixavam rapidamente o bazar. Um lojista, ao fechar uma persiana, esbarrou no velho, e vi um violento arrepio instantaneamente percorrer todo o seu corpo. Ele se precipitou para a rua, olhou ansiosamente ao seu redor por um momento, e saiu correndo com uma rapidez incrível por várias ruazinhas tortuosas e desertas até que alcançamos novamente a grande artéria de onde tínhamos partido — a rua do Hotel D…. Ela, no entanto, já não apresentava o mesmo aspecto. Ainda brilhava sob o gás; mas a chuva caía furiosamente, e só se avistavam poucas pessoas. O desconhecido ficou pálido. Deu alguns passos mal-humorados no que fora uma avenida populosa e então, com um profundo suspiro, tomou a direção do rio e, mergulhando em inúmeros desvios, foi parar, afinal, diante de um dos principais teatros. Este estava para fechar, e o público formigava pelas portas. Vi o velho como que sufocar enquanto se jogava em meio à multidão; mas achei que a agonia intensa de sua fisionomia tinha, de certa forma, diminuído. Sua cabeça caiu novamente sobre seu peito; ele se mostrava tal qual eu o tinha visto no princípio. Notei que ele agora se dirigia para onde se fora a maior parte do público — mas, no geral, não compreendia absolutamente a indocilidade de suas ações.

Enquanto ele avançava, as pessoas iam rareando, e seu velho mal-estar e vacilação ressurgiram. Durante algum tempo ele seguiu de perto um grupo de uns dez ou doze arruaceiros; mas deste número um por um foi sumindo, até que apenas três permaneceram juntos, numa travessa estreita e sombria, pouco freqüentada. O desconhecido deteve-se e, por um momento, pareceu perdido em reflexões; então, evidentemente perturbado, tomou rapidamente um caminho que nos trouxe ao extremo da cidade, por zonas bem diferentes daquelas que tínhamos atravessado até então. Era o mais repulsivo bairro de Londres, onde cada coisa é revestida da pior marca da mais deplorável pobreza e do crime mais desesperado. À luz de um eventual lampião viam-se casas de madeira altas, antigas, titubeantes e atacadas por cupins, em tantas e tão caprichosas direções que mal se percebia entre elas algo parecido com uma passagem. Os paralelepípedos jaziam a esmo, arrancados de seus lugares pela grama crescendo solta. Uma imundície horrível apodrecia nas sarjetas entupidas. A atmosfera toda era repleta de desolação. No entanto, enquanto avançávamos, os ruídos da vida humana ressurgiam clara e gradualmente, e afinal avistamos grandes bandos dos maiores marginalizados de um populacho londrino, cambaleando daqui e dali. O ânimo do velho tremulou novamente, como uma lamparina prestes a expirar. Ele mais uma vez saiu andando a passos largos e elásticos. De repente, dobrou-se uma esquina, um clarão de luz nos explodiu nos olhos, e nos deparamos com um dos imensos templos suburbanos da Intemperância — um dos palácios do demônio, o Gin.

Já quase amanhecia; mas inúmeros bêbados miseráveis ainda se espremiam dentro e fora da ostensiva entrada. Com um grito contido de alegria, o velho abriu passagem para dentro, reassumiu de imediato sua postura inicial e se pôs a circular para lá e para cá, sem desígnio aparente, em meio à massa. Ele, no entanto, não estivera há muito assim ocupado quando um movimento intenso rumo às portas indicou que o proprietário estava por cerrá-las. Foi algo ainda mais intenso que desespero que observei então na fisionomia deste ser singular que eu vinha espiando tão obstinadamente. Contudo, não hesitou em sua carreira e, com louca energia prontamente retornou sobre seus passos para o coração da imponente Londres. Correu rápida e longamente, enquanto eu o seguia com o mais desvairado espanto, decidido a não abandonar uma investigação pela qual sentia agora um interesse de todo absorvente. O sol nasceu enquanto avançávamos e, quando mais uma vez alcançamos o apinhadíssimo centro comercial da populosa cidade, a rua do Hotel D…, esta apresentava um ar de alvoroço e atividade humanas pouco menor do que o que eu tinha visto na noite anterior. E ali, por muito tempo, em meio à confusão que aumentava sem cessar, persisti em minha perseguição ao desconhecido. Mas ele, como sempre, andava para lá e para cá, e durante o dia não se afastou do turbilhão daquela rua. E, como se aproximassem as sombras da segunda noite, fui ficando mortalmente cansado e, parando bem em frente ao andarilho, o encarei resolutamente. Ele não reparou em mim, e retomou sua caminhada solene, enquanto eu, deixando de segui-lo, fiquei absorto em contemplação. “Este velho,” eu disse afinal, “é o modelo e o gênio do crime profundo. Ele se nega a ficar sozinho. Ele é o homem da multidão. Vai ser inútil segui-lo; pois não vou aprender mais nada, nem com ele, nem com seus atos. O pior coração do mundo é um livro mais repulsivo  do que o “Hortulus Animae”*, e talvez seja apenas uma das grandes misericórdias de Deus que “er lasst sich nicht lesen”.”

* O “Hortulus Animae cum Oratiunculis Aliquibus Superadditis” de Grüninger.

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