O pecado e o tempo

Não devia, mas o conceito de pecado parece cada vez mais temporal.

Quando eu era adolescente, você conhecia um protestante não pelo que ele fazia, mas pelo que não fazia. Ser “evangélico” não tinha muita relação com ajudar os idosos, os órfãos, as viúvas. Tinha muito mais a ver com seu nível de abstenção. Era fácil reconhecê-los: na hora que ia começar uma coisa divertida, eles eram os que estavam no canto, olhando a parede, pensando se suicídio é ou não pecado.

Como protestante, passei minha adolescência toda assim: se tinha uma festa, eu ficava animado, até começar a pegação. Quando isso acontecia, descobria qual cômodo da casa tinha TV e ficava vendo Zorra Total. Ao irmos a um barzinho, eu chegava antes de todo mundo, para poder aproveitar ao máximo enquanto os outros não apareciam. Pois, ao chegarem, eles ficavam bêbados rapidamente (e ser sóbrio em meio aos bêbados é pior que ser bêbado em meio a uma reunião do AA). E quando eles jogavam algo? Podiam jogar tudo! Podiam brincar de bola, finca, Super Nintendo, pedrada na tia! Mas não! Sempre tinha um infeliz que sugeria Pokémon. E eu não podia jogar. Certa vez alguém disse na igreja que Pokémon era monstro dentro do bolso. Como “evangélico”, eu não podia ter um monstro dentro do bolso… Funesto pregador.

Assim, na minha adolescência, passei sem as três coisas mais importantes para a formação psicológica e moral de um ser adulto completo: pegação, bebida e Pokémon.

Tudo bem. Se todos passassem por isso, não ligaria. Um dia os manuais de psicanálise seriam reescritos no intuito de enquadrar essas faltas na formação do ser “evangélico”. O problema é que depois de mim – nem 10 anos depois de mim – eis que surge uma nova geração de cristãos descolados! E, com eles, as definições de pecado foram atualizadas.

Na minha época, havia a importuna “côrte”. “Crente” não namorava, fazia côrte, uma espécie de namoro santo celestial destinado aos seres alados altíssimos que ainda habitavam na terra. Ou seja, se você fosse como eu (feio) e após muito custo (horas de MSN) conseguisse convencer (em algum momento de loucura dela) uma gatinha (no caso, varoa), mesmo assim você não estaria namorando! Estaria fazendo côrte, que, entre outras coisas, proibia: beijo antes do casamento, abraços prolongados, encontros a sós, marcar o outro na foto do Orkut e escrever “É muito amor envolvido”. Na boa, eu não namorei na adolescência (pois era feio), mas, com tantas restrições, acho que seria mais agradável jogar Pokémon que fazer corte (se eu pudesse, claro).

Hoje em dia, um monte de igrejas faz festa para solteiros, chegando ao cúmulo de ter uma que se chama Festa da Costela Perdida! Poxa, eu não sei, mas quem está desesperado a ponto de ir a uma festa como essa, não deve estar disposto a fazer côrte!

A visão sobre a bebida, de igual forma, mudou radicalmente. Hoje em dia cristão bebe. É verdade que não do mesmo jeito que as outras pessoas bebem: cristão bebe de modo pedante! Nunca vi um pedindo Skol, Kaiser, Caracu, Devassa. Sempre pedem um vinho, um João Caminha rótulo vermelho, uma cerveja Belga.

E o Pokémon? Se você acha que os monstros de bolso ainda estão proibidos, acho que você concordará com o Zagallo: “Aí sim, fomos surpreendidos novamente!”.

Nunca vi um cristão defendendo o jogo ou até o anime do Pokémon. Mas já vi defendendo Magic the Gathering. Ora, se pode Magic, um jogo no qual um mago invoca criaturas para lutar por ele (criaturas como Demônio da Profanação, Necropolis Fiend e Ob Nixilis, o caído), pode tudo! Pode Pokémon? Pode! Pode o jogo do copo? Pode! Pode jogar RPG no cemitério da UFOP, jogar Hoje-Não, cotar a bunda dos outros com estilete na praça Sete? Opa, claro que pode!

Não sei se concordo com todas essas mudanças. Ainda acho que algumas deveriam ser mais bem discutidas: sou contra namoros não pensados (apesar de confessar que não fiz côrte), sou contra a bebida (mas já tomei sorvete de rum) e não jogo Pokémon (ninguém nunca me chamou para jogar). Mas acredito que só saberei se a nova geração de evangélicos descolados está certa quando chegar no céu. Lá, perguntarei para Deus se estava liberado a pegação, as bebidas e os Pokémons. E confesso que ficarei um pouco decepcionado se ele responder algo assim:

_ Boa pergunta, filho! Vamos tomar uma antes dessa conversa?