A terrível história do violinista verde

Podia ter sido qualquer obra de arte, mas, infelizmente, foi um quadro de Marc Chagall que voltou a vida naquele fatídico dia. Aliás, um quadro não! O quadro ficou parado. O que mexeu foi o personagem. O violoncelista verde, para ser mais preciso, agarrou-me com força, assim que passei no lugar em que ele estava exposto. Não sei o motivo de ter me escolhido. Milhares de pessoas passam por ali o ano inteiro, durante anos e mais anos. Mas, não! Foi justo eu, um ser que não gosta de Marc Chagall.

Eu apenas sei que, quando passava distraído pela sala, fui agarrado pelo pescoço. Bati na tela com força, ainda meio assustado, com uma pequena mão me agarrando, como se, inutilmente, tentasse me forçar a entrar na moldura. E eu nada fiz! Por um milésimo de segundo, achei que o Ivo Holanda sairia detrás de uma escultura ou que o João Cleber apareceria, gritando:

_ Para para para para!

Não, não era uma pegadinha. E eu tive certeza disso quando o violinista empurrou o arco do violino fortemente contra minha carótida, quase a ponto de perfurá-la.

Foi um caos. Pessoas correndo por toda sala, crianças gritando de desespero e um rapaz tirando foto, achando que fazia parte de um espetáculo cultural. Tentei me desvencilhar rapidamente, empurrando-o, mas o violoncelista verde me puxava, esfregando meu rosto no meio da pintura. Quanto mais eu tentava sair, mais tentava me levar para dentro do quadro. Foi quando percebi que ele falava:

_ Llkjfsasdll aflsdkjc cvboirtaç asdfglçkj adlfll asdflkjgaoq l´kjasdf!

Dizia repetidamente, cada vez mais alto.

Não demorou muito para um segurança, de quase dois metros de muita massa magra (e gorda), chegar, armado. O violoncelista tentou se esconder atrás de mim e eu, desesperado, apenas pedia calma aos dois: a uma pintura e a um homem que queria atirar em uma pintura. E ele continuava:

_ Llkjfsasdll aflsdkjc cvboirtaç asdfglçkj adlfll asdflkjgaoq l´kjasdf! Llkjfsasdll aflsdkjc cvboirtaç asdfglçkj adlfll asdflkjgaoq l´kjasdf! Llkjfsasdll aflsdkjc cvboirtaç asdfglçkj adlfll asdflkjgaoq l´kjasdf!

O segurança, desesperado, olhou para mim:

_ O que está dizendo?

_ Eu não sei! Eu não entendo arte moderna!

_ E o que eu faço?

_ Me puxa!

_ E se a pintura rasgar? Vale milhões!

_ Qwwulasld bah! – Interrompeu o violinista, apertando o arco cada vez mais forte contra o meu pescoço.

Ficamos naquele impasse até que outras pessoas chegaram. Tive a sensação de estar cercado por todos os seguranças do local (que nada faziam, apenas olhavam estupefatos a cena). Até que alguém apontou para um senhor, que entrava na sala:

_ É o curador! Fala com ele, violinista.

_ Llkjfsasdll aflsdkjc cvboirtaç asdfglçkj adlfll asdflkjgaoq l´kjasdf! – gritou –  Llkjfsasdll aflsdkjc cvboirtaç asdfglçkj adlfll asdflkjgaoq l´kjasdf!

A perna do senhor bambeou um pouco, no entanto, manteve a calma. Afinal de contas, tinha feito doutorado em artes contemporâneas. Um doutor tem que estar preparado para dar palpite em tudo! Entretanto, após muita análise, apenas disse:

_ Desculpem. Acho melhor ligarmos para a faculdade de Belas Artes. Talvez haja um especialista em Chagall por lá.

E ele perdeu seu título de doutor naquela mesma noite.

Pelo menos havia uma especialista em Chagall na faculdade. Ela demorou a chegar, mas chegou, transpirando e tremendo. Para dizer a verdade, demorou tanto que o quadro já cansara e assoviava uma música country. Porém, assim que viu a professora se aproximando, apertou meu pescoço e gritou novamente:

_ Llkjfsasdll aflsdkjc cvboirtaç asdfglçkj adlfll asdflkjgaoq l´kjasdf! Llkjfsasdll aflsdkjc cvboirtaç asdfglçkj adlfll asdflkjgaoq l´kjasdf!

A professora se aproximou, até um segurança dizer que estava próxima demais, que poderia ser perigoso. Então ela começou a rodar o quadro, tentando ver o violinista verde o máximo possível, sobretudo a parte além da moldura. Depois de algum tempo, olhou para os guardas e falou:

_ Que porra é esta?

Eu mesmo tentei explicar o que havia ocorrido: a pintura me agarrou com uma mão, colocando um arco do violino no meu pescoço e começou a me puxar. Era isso… ahh, e gritava! Gritava até me deixar quase surdo, a ponto daquilo não sair da minha cabeça, de ficar ecoando, mesmo que não entendesse. Perguntei o que o violinista dizia e ela me respondeu:

_ Essas obras de arte são muito abertas. Acho que pode significar duas coisas: “Cadê o Marc Chagall?” ou “Essas malandra só quê vrau”.

De fato, eu concordei que as duas opções seriam boas interpretações possíveis para a fúria de um quadro. O problema é que a professora não conseguia falar em “modernistico”, então não pode dialogar com a imagem. Ela só estudava pinturas, até as entendia, mas não conseguia se expressar artisticamente.

Com o tempo, alguns pesquisadores começaram a chegar. Todos queriam dar uma opinião sobre o fato. Um jovem, inclusive, desesperado com o fim do semestre, acabou fazendo um artigo acadêmico intitulado: “Formalismo e tradição moderna em um paradigma de arte na crise da cultura contemporânea”. Aparentemente, ele escreveu um artigo de 45 páginas só tentando explicar o título do artigo.

Quando eu comecei a não ter esperança alguma de sair dali, chegou um professor universitário brasileiro, que estava fazendo uma viagem aqui em Nova York. Ele olhou, olhou, olhou, ouviu várias vezes o que o violinista dizia e, após estalar os dedos, proferiu calmamente:

_ Nada existe realmente a que se possa dar o nome arte. Existem somente artistas, que criam em um mundo sem fronteiras. Apesar de tentarmos aprisiona-los, não existem limites estéticos. Se percebermos a existência de um limite, é bom que exista uma arte que venha ultrapassá-lo. Aqui, a meu ver, a arte supera seu antagonista opressor, que seria a própria tela, invadindo o mundo a qual está inserido. Temos que deixar a obra de arte ser o que ela é e, se ela emaranhar por nós, temos que aceitar. O homem não diz à arte o que é arte e até onde deve alcançar! A arte define o que é o homem e quando ele começa a fazer parte da própria arte.

Ninguém entendeu nada, todos aplaudiram e eu estou aqui até hoje, abraçado com o violinista verde (que, de vez em quando, grita na minha cabeça). A exposição voltou ao normal, todos caminham livremente pela sala – algumas pessoas até me cumprimentam. Todavia, a maioria, hoje em dia, tenta passar longe dos quadros de Marc Chagall. Eles são perigosos: por muito pouco, podem te pegar.

Bem, pelo menos fui agarrado por um violinista, não pelo Saturno, de Francisco de Goya.